A consolidação do Sistema de Proteção Social dos Militares à luz dos recentes precedentes do STF 

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ADI 6917 e Tema 1177

Roger Nardys de Vasconcellos[i]

Com o advento da Carta Magna de 1988 (CF/88) inaugura-se no ordenamento jurídico pátrio um capítulo inteiro dedicado à Seguridade Social (Capítulo II do Título VII), estabelecendo “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194 da CF/88). Os precitados direitos relativos à previdência, organizados sob a forma do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (art. 201 da CF/88), sofreram substanciais alterações decorrentes das sucessivas reformas, em especial as implementadas pelas Emendas Constitucionais (EC) nº 20, de 15/12/1998, nº 41, de 19/12/2003, e nº 103, de 12/11/2019.

Esse grande sistema previdenciário (RGPS) abrange todos os trabalhadores, empregados públicos e profissionais autônomos – pessoas que exercem atividade laboral remunerada, excluídos os servidores públicos efetivos, de todas as esferas de Poder, que pertencem ao Regime Próprio de Previdência Social – RPPS (art. 40 da CF/88), e os militares, que possuem um Sistema de Proteção Social – SPSM (art. 42 e 142 da CF/88)[1].   

A última grande reforma previdenciária (EC n° 103/2019) promoveu profundas mudanças no RGPS e no RPPS, concretizando a tendência unificadora já percebida nas reformas anteriores, culminando com a máxima aproximação das regras. Essa unificação fica evidenciada especialmente pela adoção do Regime de Previdência Complementar (RPC) como regra no âmbito do RPPS (art. 40, §§ 14 a 16), inclusive sinalizando a própria extinção do RPPS (art. 40, §22) com mecanismos de fomento à migração de servidores ao novo modelo. Como consequência, os artigos 40 e 201 se entrelaçaram em institutos como idade mínima, tempo de contribuição, piso e teto, pensão com redutor, critérios atuariais, dentre outros (art. 40, §12). 

Ao passo de promover a unificação das regras dos regimes previdenciários (RPPS e RGPS), a última reforma não descurou em assegurar a segregação do regime constitucional dos militares, sem caráter previdenciário, existente desde o texto constitucional originário[2] e reafirmado pela EC n° 18, de 05/02/1998. A premissa do constituinte (originário e derivado) é a da a singularidade da profissão militar[3], de caráter nacional, que demanda um tratamento jurídico próprio e diverso dos demais[4]. E nesse sentido, a EC n° 103/2019 operou algumas alterações que merecem destaque: (i) incluiu o § 14 no art. 37, dispondo que a aposentadoria do servidor ou trabalhador (RPPS e RGPS) rompe o vínculo laboral; diferentemente, os militares ao passarem para a reserva mantém sua condição de militar e podem ser convocados ao serviço ativo em determinadas condições, inclusive, estão sujeitos ao perdimento da condição de militar mesmo na reserva por violação aos códigos castrenses; (ii) alterou o caput do art. 40 para, dentre outras modificações, substituir o termo servidores inativos por aposentados; por conseguinte, o conceito jurídico de inativos ficou adstrito ao regime jurídico dos militares; (iii) inseriu o § 9º-A ao art. 201 distinguindo o tempo de serviço militar exercido no âmbito do regime constitucional próprio (art. 42 e 142) do tempo de contribuição vinculado aos regimes do RPPS (art. 40) e do RGPS (art. 201); evidenciando a natureza não contributiva do tempo de serviço militar.

O regime próprio dos militares é assentado na interpretação sistemática dos seguintes dispositivos constitucionais, elencados aqui em ordem topográfica: art. 5°, LXI; art. 12, §3°, VI; art. 14, §§ 2°e 8°; art. 22, XXI; art. 42 e §§ 1° a 3°; art. 61, §1°, II, “f”; art. 92, VI; arts. 122 a 124; art. 125, §§ 3° a 5°; art. 128, I, “c”; art. 142 e §§ 1° a 3°; art. 143 e §§ 1° e 2°; art. 144, V, § 4° in fine e §§ 5° e 6°; art. 201, §9-A. A técnica legislativa do constituinte é a da remissão expressa, ou seja, somente é possível aplicar aos militares os dispositivos expressamente definidos pela Constituição.

Nessa senda, o sistema de proteção social é um subsistema jurídico contido no regime constitucional próprio dos militares, conceituado como o conjunto integrado de princípios e normas previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional, assegurando direitos, serviços e ações, permanentes e interativas, de remuneração, pensão, saúde e assistência aos militares no Brasil, em âmbito federal (Marinha, Exército e Aeronáutica) e estadual (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares). O conjunto normativo do SPSM é composto pela Lei Federal n° 3.765, de 04/05/1960 (Pensão Militar); Decreto-Lei n° 667, de 02/07/1969 (Organiza as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares); Lei Federal n° 6.880, de 09/12/1980 (Estatuto dos Militares federais); Lei Federal n° 13.954, de 16/12/2019 (Dispõe sobre a proteção social dos militares), e pelas respectivas Leis Estaduais que suplementam as regras gerais da União.

O SPSM reconhece a existência das condições especiais comuns na vida laboral desses especiais agentes do Estado, entre as quais, exemplificativamente, cita-se que penhoram a própria vida na defesa do cidadão; estão submetidos a rígidos códigos disciplinares e sob a égide de legislação penal militar e processual penal militar especial, essenciais ao controle da Força; cumprem rotina de trabalho com alto grau de letalidade; expõem-se a diuturno risco à vida, à saúde e à integridade física, tanto na função de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, quanto na função de combate a incêndios, resgate e salvamento, inclusive em locais insalubres e hostis; sujeitam-se a escalas de serviço com variações de horários, não raro sem perceber adicional noturno ou hora extraordinária; são impedidos de sindicalização e greve; são mobilizáveis ao serviço ativo em determinadas condições; mesmo na reserva estão sujeitos ao cumprimento do decoro e ética profissional, sob pena de indignidade; possuem dedicação exclusiva à profissão; podem ser transferidos constantemente para melhor atender ao interesse público; têm o dever legal de agir na defesa social, ainda que fora do serviço; podem perder o posto e a graduação mesmo na reserva, com consequente perda de proventos; são compulsados à reserva ao completarem determinada idade que incompatibiliza ao pleno e seguro exercício funcional (LAZZARINE, 2005)[5]. Derradeiramente, os reflexos da profissão repercutem de forma direta em todo o núcleo familiar, sendo a proteção ao militar e sua família a necessária contrapartida social, condição à máxima efetividade no cumprimento da missão.

Nessa toada, no exercício da competência legislativa sobre a matéria inatividade e pensão militar conferida pelo inc. XXI do art. 22 da CF/88[6], a União definiu em norma geral que “O Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios deve ser regulado por lei específica do ente federativo, que estabelecerá seu modelo de gestão e poderá prever outros direitos, como saúde e assistência, e sua forma de custeio”; bem como, que “Não se aplica ao Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios a legislação dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos”.[7]A segregação dos militares dos regimes previdenciários, delimitada pela Constituição e detalhada em norma geral da União (Lei Federal 13.954/19) foi objeto de profundo exame no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6917, da qual se extrai a seguinte ementa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO E EMENDA CONSTITUCIONAL ESTADUAL 92/2020. INCLUSÃO DE SERVIDORES MILITARES NO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DO ESTADO. CONTRARIEDADE À NORMA GERAL FIXADA PELA UNIÃO, A PARTIR DA LEI FEDERAL 13.954/2019. (…) 1. A competência estatuída no art. 22, XXI, da Constituição Federal, consoante a reforma promovida pela EC 103/2019, outorga à União a prerrogativa de conceber normas gerais sobre inatividades e pensões das polícias militares. 2. No exercício dessa competência legiferante, foi editada a Lei Federal 13.954/2019, que reconheceu aos Estados-Membros a competência para disciplinarem o Sistema de Proteção Social dos seus respectivos militares, desde que não lhes sejam aplicadas as normas do regime próprio dos servidores civis. 3. O art. 140-A, § 2º, IV, da Constituição do Estado de Mato Grosso, ao prever que uma lei complementar estadual relacionada ao regime próprio de previdência social fixará, entre outros requisitos, condições para a aposentadoria dos policiais militares, revela-se incompatível com a Constituição Federal, por violar normas gerais fixadas em âmbito federal. (…) Ação direta julgada procedente. (ADI 6917, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21/03/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 28-03-2022)

O precedente citado sedimenta a juridicidade do sistema de proteção social na dimensão da inaplicabilidade dos institutos do RPPS ou do RGPS aos militares, corroborando todos os argumentos até aqui expostos. Diante da relevância do decisum, colaciona-se os seguintes excertos do voto condutor da lavra do Min. Alexandre de Moraes, in verbis:

(…) Competência privativa da União para legislar sobre inatividades e pensões das polícias militares.

A Constituição Federal de 1988, em seu texto original, qualificou os integrantes da Polícia Militar como servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal (art. 42), em posição topográfica distinta (seção III) daquela que disciplinara o tratamento conferido aos servidores públicos civis (seção II), ambos incluídos no capítulo destinado à Administração Pública. O constituinte reconheceu, pois, a importância de tecer um regramento próprio àqueles que prestam “um serviço típico do Estado, integra uma carreira essencial do Estado voltada à segurança pública” (LAZZARINI, Álvaro. Regime Próprio de Previdência para os Militares Estaduais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, n. 5, ano XXII, maio, 2006). O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em diversas oportunidades, assinalou a distinção entre o regime aplicado aos servidores públicos civis e aquele ao qual pertencem os militares, marcado por direitos e garantias próprios da categoria: (…)

Decentralizou-se, portanto, ao Estado-Membro a competência para regulamentar o regime próprio especial a ser aplicado aos integrantes da Polícia Militar, na qualidade de militares estaduais. Cito, nesse sentido, a lição de IVES GANDRA DA SILVA MARTINS: (…)

A margem conferida ao legislador estadual para regulamentar as matérias referidas pelo art. 142, § 3º, X, no entanto, não abarca a possibilidade de unificar o regime próprio dos servidores civis ao regime próprio dos militares. Os regramentos de ambos, antes apartados, entre outros, por obra de um preceito constitucional outrora revogado, atualmente encontram-se separados por força de normas de caráter geral estabelecidas em lei federal. (…)

A mesma Emenda à Constituição 103/2019 atribuiu, ainda, uma nova competência privativa direcionada ao legislador federal, assentando a necessidade de a União positivar normas gerais no tocante a “inatividades e pensões das polícias militares” (CF, art. 22, XXI). Nota-se, portanto, que, embora caiba aos Estados legislarem sobre aspectos pontuais relacionados ao regime previdenciário de seus militares, regulamentando as especificidades atinentes aos temas previstos no artigo 142, § 3º, X, da Constituição Federal, compete à União conceber normas de caráter geral sobre sua aposentadoria (ADI 4.912, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 24/05/2016; ACO 3.396, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, DJe de 19/10/2020). O Congresso Nacional editou, sob tal direção, a Lei 13.954/2019, reconhecendo aos Estados-Membros a competência para disciplinarem o Sistema de Proteção Social dos seus respectivos militares, desde que não lhes sejam aplicadas as normas do regime próprio dos servidores civis. (g.n.)

Doravante, após o marco regulatório da proteção social estabelecido pela Lei Federal 13.954, de 15/12/2019, a competência dos entes subnacionais (Estados e DF) para legislar sobre inatividades e pensões dos militares estaduais deve observar, à luz do entendimento sufragado acima, as normas gerais da união, sob pena de inconstitucionalidade e ilegalidade; no mesmo sentido, a legislação estadual anterior que conflite com as normas gerais de inatividade e pensão estão com eficácia suspensa (CF/88, art. 24, § 4º)[8].

A tutela da proteção social dos militares dentro do marco regulatório estabelecido pela Lei n. 13.954/2019 possui natureza retributiva[9], o que significa dizer que o Tesouro[10] deve suportar o custeio de seus militares, ativos ou inativos, e pensionistas militares, independentemente de fundo ou critérios de equilíbrio atuarial, em parâmetros simétricos entre as Forças Militares[11] de âmbito federal e estadual, dado o caráter nacional da profissão militar. Contudo, o estabelecimento da uma alíquota nacional unificada, prevista no art. 24-C do Decreto-Lei nº 667/69[12], restou considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, com efeitos erga omnes, no julgamento do tema 1177, in litteris:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. FEDERALISMO E REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS. ARTIGO 22, XXI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COM A REDAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL 103/2019. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE NORMAS GERAIS DE INATIVIDADES E PENSÕES DAS POLÍCIAS MILITARES E DOS CORPOS DE BOMBEIROS MILITARES. LEI FEDERAL 13.954/2019. ALÍQUOTA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA INCIDENTE SOBRE A REMUNERAÇÃO DE INATIVOS E PENSIONISTAS. EXTRAVASAMENTO DO ÂMBITO LEGISLATIVO DE ESTABELECER NORMAS GERAIS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MULTIPLICIDADE DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. CONTROVÉRSIA DOTADA DE REPERCUSSÃO GERAL. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 1338750 RG, Relator MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 21/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-213 DIVULG 26-10-2021)

Em síntese, ficou sedimentada a tese de que “a competência privativa da União para a edição de normas gerais sobre inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares (artigo 22, XXI, da Constituição, na redação da Emenda Constitucional 103/2019) não exclui a competência legislativa dos Estados para a fixação das alíquotas da contribuição previdenciária incidente sobre os proventos de seus próprios militares inativos e pensionistas, tendo a Lei Federal 13.954/2019, no ponto, incorrido em inconstitucionalidade”. O ponto da inconstitucionalidade é preciso, qual seja, a União não pode definir a alíquota de contribuição ao sistema de proteção social no âmbito dos Estados, apenas estabelecer as normas gerais e parametrizar.

Como decorrência, confirmando os precedentes em controle difuso extraídos das Ações Civis Originárias 3350-RS[13] e 3396-MT[14], culminou declarada pela Corte Suprema, à unanimidade, a inconstitucionalidade do art. 24-C do Decreto-Lei nº 667/69, com modulação dos efeitos conduzida em sede de Embargos de Declaração, no voto condutor do Min. Presidente Luiz Fux, in litteris:

(…) Dito isso, reputo presentes os pressupostos autorizadores da modulação temporal de efeitos da tese fixada no Tema 1.177, a fim de que se prestigiem os princípios da segurança jurídica, da confiança legítima e da boa-fé objetiva. Ademais, convém conferir prazo mais dilatado para aprovação das respectivas leis locais, para regulamentar o Sistema de Proteção Social dos militares estaduais e distritais, sem vinculação com as normas do regime próprio de previdência dos servidores públicos. Com efeito, a determinação por lei federal de que os entes federados elaborem lei específica, para regulamentar o Sistema de Proteção Social de seus militares, é norma de caráter geral a demandar uma preocupação com a uniformidade de tratamento das inatividades e pensões de militares estaduais, sendo certo que já se passaram quase três anos desde a data de publicação da lei impugnada. Destarte, reputo suficiente a concessão de efeitos prospectivos à declaração de inconstitucionalidade do artigo 24-C do Decreto-Lei 667/1969, inserido pela Lei 13.954/2019, a fim de que sejam consideradas válidas todas as contribuições realizadas com fundamento na referida lei federal até 1º de janeiro de 2023.

Do aresto acima, extrai-se extreme de dúvidas que a Corte Suprema, mais uma vez, reconhece a necessidade de uniformidade no tratamento jurídico das inatividades e pensões militares no âmbito dos entes subnacionais, “sem vinculação com as normas do regime próprio de previdência dos servidores públicos”. No julgamento, a Corte avança afirmando ser imperativo, decorrente da constitucionalidade das normas gerais, que os “entes federados elaborem lei específica, para regulamentar o Sistema de Proteção Social de seus militares”, estabelecendo prazo prospectivo até 1º de janeiro de 2023.

A modulação invoca a presunção de constitucionalidade das normas jurídicas e tutela os Estados que aplicaram a alíquota federal, desconstituindo todas as demandas judiciais, individuais ou coletivas, que objetivavam a devolução de valores arrecadados pelo Tesouro decorrentes da diferença entre a alíquota nacional constante do art. 24-C do Decreto-Lei nº 667/69 e a alíquota então estabelecida nas Leis Estaduais[15]. Em suma, os Estados de São Paulo e Santa Catarina, por exemplo, inertes em sua obrigação de aprovar a respetiva lei de proteção social, obtiveram a convalidação da alíquota nacional aplicada, mesmo que eventualmente a legislação anterior contivesse alíquota mais benéfica por contemplar o instituto da faixa de imunidade aos inativos e pensionistas[16]. De outra banda, os Estados que legislaram sobre o sistema de proteção social e estabeleceram, dentro dos parâmetros das normas gerais, suas alíquotas, em nada são afetados pelo referido decisum, que apenas confirmou a necessidade de lei estadual para dispor sobre a alíquota.

Nesse diapasão, já existem diversas legislações que regularam o sistema de proteção social dos militares no âmbito dos respetivos Estados, todas adotando a mesma alíquota das Forças Armadas, dentro do sentido teleológico do modelo de simetria insculpido pela EC nº 103/2019, pela Lei Federal nº 13.954/2019 e em conformidade com a autonomia redefinida pelo Supremo Tribunal Federal para a matéria.   

Essa autonomia legislativa não significa o retorno aos status quo ante, ou seja, a capacidade legislativa plena dos Estados para legislar sobre a matéria, pois há que ser respeitada a competência da União para as normas gerais, como se dessume do seguinte trecho extraído do julgado em comento:

(…) Ademais, ao contrário do que entende a parte embargante, o retorno ao sistema contributivo anterior à edição da lei federal, por força da inconstitucionalidade proclamada, prevalece até a edição da norma a que alude a Lei 13.954/2019, prescindindo, ipso facto, da declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 24-E do Decreto-Lei 667 /1969, cuja disposição, por sua típica natureza de norma geral, é válida e impõe aos entes federados o dever de editar lei específica para regular o Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Podemos concluir, de todo o exposto, à luz do art. 22, inciso XXI, da Constituição Federal, com a redação conferida pela EC nº 103/19, na esteira da jurisprudência superior assentada na ADI 6917 e no Tema 1177, que à União compete estabelecer normas gerais a respeito de inatividade e pensões das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, a exemplo daquelas a que se referem os arts. 24-D e 24-E do Decreto-lei nº 667/69, incluídos pela Lei nº 13.954/19[17]. Por via de consequência, sendo vedada a adoção de institutos do RPPS ao sistema de proteção social dos militares enquanto norma geral, a legislação estadual não pode estabelecer faixa de isenção (art. 40, §18) ou alíquota progressiva (art. 40, §22)[18], restritos ao modelo previdenciário dos servidores públicos.

Destarte, os entes subnacionais estão com a obrigação de implementar, com prazo protelado para até 1º de janeiro de 2023, as respectivas legislações estaduais de proteção social dos militares, respeitando as normas gerais da União que estabelecem integralidade e paridade da remuneração de inatividade e da pensão militar, além de outras regras balizadoras da legislação visando à uniformidade nacional da profissão militar.


[1] Vide nosso artigo: O Regime de Previdência Complementar e o Sistema Constitucional de Proteção Social dos Militares no Brasil. https://www.feneme.org.br/o-regime-de-previdncia-complementar-e-o-sistemaconstitucional-de-proteo-social-dos-militares-no-brasil/

[2] A redação originária do art. 42 da Constituição já permitia afirmar (i) a distinção entre servidores públicos (antes civis) e militares (antes servidores militares) e (ii) a simetria de regime jurídico da profissão militar.

Art. 42. São servidores militares federais os integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal os integrantes de suas polícias militares e de seus corpos de bombeiros militares. § 1º As patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados das Forças Armadas, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, sendo-lhes privativos os títulos, postos e uniformes militares. § 2º As patentes dos oficiais das Forças Armadas são conferidas pelo Presidente da República, e as dos oficiais das polícias militares e corpos de bombeiros militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal, pelos respectivos Governadores. § 3º O militar em atividade que aceitar cargo público civil permanente será transferido para a reserva. § 4º O militar da ativa que aceitar cargo, emprego ou função pública temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a inatividade. § 5º Ao militar são proibidas a sindicalização e a greve. § 6º O militar, enquanto em efetivo serviço, não pode estar filiado a partidos políticos. § 7º O oficial das Forças Armadas só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra. § 8º O oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no parágrafo anterior. § 9º A lei disporá sobre os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do servidor militar para a inatividade. § 10. Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo, e a seus pensionistas, o disposto no art. 40, §§ 4º e 5º. § 11. Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo o disposto no art. 7.º, VIII, XII, XVII, XVIII e XIX. 

[3]  RE 596.701-RG, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 26/06/2020:

(…) 2. Há sensíveis distinções entre os servidores públicos civis e os militares, estes classificados como agentes públicos cuja atribuição é a defesa da Pátria, dos poderes constituídos e da ordem pública, a justificar a existência de um tratamento específico quanto à previdência social, em razão da sua natureza jurídica e dos serviços que prestam à Nação, seja no que toca aos direitos, seja em relação aos deveres. Por tal razão, é necessária a existência de um Regime de Previdência Social dos Militares (RPSM) distinto dos Regimes Próprios de Previdência civis e os militares, estes classificados como agentes públicos cuja atribuição é a defesa da Pátria, dos poderes constituídos e da ordem pública, a justificar a existência de um tratamento específico quanto à previdência social, em razão da sua natureza jurídica e dos serviços que prestam à Nação, seja no que toca aos direitos, seja em relação aos deveres. Por tal razão, é necessária a existência de um Regime de Previdência Social dos Militares (RPSM) distinto dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), sendo autorizado constitucionalmente o tratamento da disciplina previdenciária dos militares por meio de lei específica. (Precedentes do STF: RE 198.982/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão; RE 570.177, Rel. Min. Ricardo Lewandowski).

[4] Vide: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Regime geral dos servidores públicos e especial dos militares: imposição constitucional para adoção de regime próprio aos militares estaduais: inteligência dos artigos 40, 20, 42 e 142, 3º, inciso X, do texto supremo: parecer. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, n. 44, p. 307-338, set./dez. 2005. Disponível em: https://gandramartins.adv.br/parecer/regime-geral-dos-servidores-publicos-e-especial-dos-militares.

[5] LAZZARINI, Alvaro. Regime próprio de previdência para os militares estaduais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 902, 22 dez. 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7658>.

[6] CF/88, art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) XXI – normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares; (Redação dada pela EC 103, de 2019) (g.n.)

[7] Decreto-Lei n. 667/69, art. 24-E, parágrafo único. Não se aplica ao Sistema de Proteção Social dos Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios a legislação dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos(Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[8] O entendimento sobre a suspensão da eficácia das normas estaduais colidentes com normas gerais da União restou sedimentado na jurisprudência da Suprema Corte, conforme o seguinte precedente:

(…) À União cabe legislar sobre normas gerais, de observância cogente aos demais entes da federação (CF/88, art. 24, § 1º). 3. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrária (CF/1988, art. 24, § 4º). Assim, lei estadual que entre em conflito com superveniente lei federal com normas gerais em matéria de legislação concorrente não é, por esse fato, inconstitucional, havendo apenas suspensão da sua eficácia. (…) (ADI 3829, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2019, Publicação 17-05-2019) No mesmo sentido: ADI 2030, Relator Min. GILMAR MENDES, Pleno, J. em 09/08/2017, Publicação em 17-10-2018 (g.n.)

[9] Vide nosso artigo: Sistema de Proteção Social dos Militares: Regime Retributivo ou Contributivo? https://ibsp.org.br/sistema-de-protecao-social-regime-retributivo-ou-contributivo/

[10] Decreto-Lei n. 667/69, art. 24-C, § 1°. Compete ao ente federativo a cobertura de eventuais insuficiências financeiras decorrentes do pagamento das pensões militares e da remuneração da inatividade, que não tem natureza contributiva(Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[11] Decreto-Lei n. 667/69, art. 24-H. Sempre que houver alteração nas regras dos militares das Forças Armadas, as normas gerais de inatividade e pensão militar dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, estabelecidas nos arts. 24-A, 24-B e 24-C deste Decreto-Lei, devem ser ajustadas para manutenção da simetria, vedada a instituição de disposições divergentes que tenham repercussão na inatividade ou na pensão militar. (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[12] Decreto-Lei n. 667/69, art. 24-C. Incide contribuição sobre a totalidade da remuneração dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, ativos ou inativos, e de seus pensionistas, com alíquota igual à aplicável às Forças Armadas, cuja receita é destinada ao custeio das pensões militares e da inatividade dos militares. (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019) (g.n.)

[13] STF, ACO 3.350. Em 19/02/2020. “(…) defiro o pedido de tutela de urgência, para determinar que a União se abstenha de aplicar ao Estado do Rio Grande do Sul qualquer das providências previstas no art. 7º da Lei nº 9.717/1998 ou de negar-lhe a expedição do Certificado de Regularidade Previdenciária caso continue a aplicar aos policiais e bombeiros militares estaduais e seus pensionistas a alíquota de contribuição para o regime de inatividade e pensão prevista em lei estadual, em detrimento que prevê o art. 24-C do Decreto Lei nº 667/1969, com a redação da Lei nº 13.954/2019. 16. Cite-se a União. Publique-se. Intimem-se.”

[14] STF, ACO 3.350. Em 19/05/2020. “(…) Diante do exposto, presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, DEFIRO a tutela de urgência, liminarmente, para determinar que a União se abstenha de aplicar ao Estado de Mato Grosso qualquer das providências previstas no art. 7º da Lei nº 9.717/1998 ou de negar-lhe a expedição do Certificado de Regularidade Previdenciária caso continue a aplicar aos policiais e bombeiros militares estaduais e seus pensionistas a alíquota de contribuição para o regime de inatividade e pensão prevista em lei estadual, em detrimento do que prevê o art. 24-C do Decreto-Lei nº 667/1969, com a redação da Lei nº 13.954/2019”.

[15] A decisão do paradigma no âmbito da modulação dos efeitos rompeu a tradição jurisprudencial em desfavor dos militares estaduais, cujas demandas judicializadas estavam sendo decididas em conformidade com o entendimento sedimentado da Corte, de que a alíquota aplicável deveria ser a constante na Lei Estadual. Assim, considerando que os Estados já eram conscientes desse entendimento e quedaram-se inertes em aprovação de leis específicas, parece que a decisão atende, nesse ponto, exclusivamente ao viés político, inclusive porque o que foi eventualmente arrecadado a maior e deveria ser devolvido aos litigantes esta capitalizado em conta própria, tratando-se de receita vinculada.

[16] Algumas legislações estaduais estabeleceram impropriamente (em benefício) aos militares a mesma faixa de imunidade existente no §18 do art. 40 da CF/88, instituto típico do RPPS.

[17] STF, ACO 3.388, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, DJe de 14/6/2022.

[18] CF/88, art. 149. (…)

§ 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões.      

§ 1º-A. Quando houver déficitatuarial, a contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo.     

§ 1º-B. Demonstrada a insuficiência da medida prevista no § 1º-A para equacionar o déficitatuarial, é facultada a instituição de contribuição extraordinária, no âmbito da União, dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas.   (g.n.)    


Notas

[i] Bacharel em Direito (PUC/RS); Bacharel em Ciências Policiais e Segurança Pública (APM/RS); Especialista em Direito Processual Civil (PUC/RS); Especialista em Direito Militar (PUC/RS); Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Defesa Civil (ABM/RS); Diretor Jurídico Nacional da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – FENEME (www.feneme.org.br); Vice-presidente da Associação dos Oficiais Militares Estaduais do RS – ASOFBM (www.asofbm.org.br); professor; Oficial Militar Estadual.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1178089164481297