Análise crítico-reflexiva do emprego da Polícia Militar em jogos de futebol profissional

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IMAGEM ILUSTRATIVA
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 Por Ismael da Guia Silva JUS.COM.BR

A segurança realizada pela Polícia Militar em eventos esportivos profissionais promovidos pelo setor privado é desvio da finalidade pública, principalmente quando isso compromete o policiamento geral pela diminuição do efetivo disponível.

1 INTRODUÇÃO

Há anos, no Brasil, a segurança dos estádios de futebol vem sendo executada pelas polícias militares estaduais. A polícia sempre esteve presente nesse tipo de evento que atualmente é administrado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entidade de caráter privado. O acesso do torcedor às partidas de futebol requer o desembolso de um determinado valor, não havendo cota de ingressos destinados às pessoas que comprovadamente são de baixa renda, o que caracteriza que o público é restrito às pessoas que possam arcar com a compra dos ingressos, tornando patente o seu caráter particular.

Diante disso, indaga-se se há obrigatoriedade do policiamento realizado pela Polícia Militar nos estádios de futebol. A questão central desta pesquisa desdobra-se em questionamentos secundários, como: a quem pode ser atribuída a segurança dos estádios de futebol; A legislação brasileira permite o emprego de policiais nos eventos esportivos profissionais; Questiona-se ainda se a Polícia Militar poderia cobrar uma taxa para o emprego do seu efetivo na segurança dos estádios de futebol, já que se trata de um evento privado. Outra quesito a tratar é se há uma normatização da segurança dos estádios de futebol por parte da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) e/ou do Governo Federal e se cabe a PM, o indeferimento de uma solicitação de policiamento dos estádios nos jogos de futebol profissional. Outra observação importante é se a segurança do evento poderia ser realizada por segurança privada.

A segurança realizada pela Polícia Militar em eventos esportivos profissionais promovidos pelo setor privado é desvio da finalidade pública, principalmente quando isso compromete o policiamento geral pela diminuição do efetivo disponível.

Segundo a Constituição Federal (1988), a Polícia Militar é um órgão do governo estadual responsável pela preservação da ordem pública e, para tanto, tem a responsabilidade direta pela promoção da segurança da população. Por causa disso, a PM, objetivando a segurança, também é empregada em eventos abertos ao público em geral, como comemorações de virada de ano, festas juninas, carnavais, emancipação política de municípios e estado, entre outros.

Com o crescimento da população brasileira nas últimas décadas, houve consequentemente um aumento nos índices de criminalidade no país nas mais diversas modalidades e, junto a isso, a necessidade de operações policiais de prevenção ao crime se tornou fundamental e recorrente, tornando-se imperativo a disponibilização de agentes públicos de segurança para dar início às operações de prevenção. Todavia, o emprego de policiais militares em eventos privados de futebol profissional prejudica na utilização extra de policiais em exercício de atividades ostensivas públicas deixando a sociedade carente de ações policiais e tendo seus impostos, indiretamente, utilizados na obtenção de lucros por parte dos organizadores do evento. Sob o pretexto de que se trata de evento de grande proporção, Castro e Campos (2014, p. 38) expõe que “este esporte envolve multidões e, potencialmente, é causador de uma grande quantidade de ilícitos, não somente na esfera criminal, como administrativa e cível”. No entanto, esse tipo de serviço prestado pela Polícia Militar abre precedente para que organizadores de qualquer tipo de evento privado com grande público tenham o mesmo direito ao policiamento no interior de seus eventos.

Diante do exposto, existe a necessidade de se fazer uma análise crítico-reflexiva do emprego da Polícia Militar em jogos de futebol profissional.


2 SEGURANÇA, ÓRGÃO E SERVIÇO PÚBLICO

É impossível negar que a segurança está ligada ao bem estar social e que por sua vez é a maior procura do homem. A nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988) em seu título II – dos direitos e garantias fundamentais, artigos 5º e 6º, faz referência a esse bem:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso)

[…]Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (grifo nosso).

A segurança é uma necessidade inerente à natureza humana. Trata-se de um anseio pessoal, em virtude de todo ser humano precisar se sentir seguro do nascimento até sua inclusão na sociedade e, daí, a condição da segurança ser imprescindível ao ser humano. Para Oliveira (1998, p. 20), segurança é: “um sentimento, individual ou coletivo, de contenção de riscos de toda ordem, que propicia ao ser humano a tranquilidade fundamental para produzir, descansar, divertir-se, enfim, viver a plenitude da vida”.

E, ainda na Constituição Federal (1988), é relatado em seu artigo 144, caput, acerca da manutenção da ordem pública interna do Estado que está ligada a segurança:

Art. 144 A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

[…]V – polícias militares e corpos de bombeiros militares (grifo nosso).

Daí, é visto que, constitucionalmente, a segurança pública é exercida pelos órgãos públicos acima elencados, dos quais a Polícia Militar faz parte. E devido a isso, nada melhor que conceituarmos o que são órgãos públicos. Carvalho Filho (2010, p. 17) define: “como sendo um compartimento na estrutura estatal a que são cometidas funções determinadas, sendo integrado por agentes que, quando as executam, manifestam a própria vontade do Estado”. A sociedade, exercendo democracia plena, tem na segurança pública a garantia da proteção dos direitos individuais e pode assegurar o pleno exercício da cidadania.

Porém, não se pode olvidar que a segurança pública apesar de ser um dever do Estado, todos os cidadãos possuem responsabilidades, perante a carta magna, na preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Denominada de segurança interna de um país, a segurança pública é conceituada por Garcia (2004, p. 338) da seguinte forma:

As atividades de segurança interna são as que buscam preservar a ordem pública e proteger os integrantes da coletividade da violência, com prevenção e repressão às atividades delituosas. A segurança interna recebe, comumente, a denominação segurança pública.

Observa-se, nesse contexto, que a segurança pública está pautada na coletividade, no intuito de coibir e reprimir ações criminosas que perturbem a ordem pública. No §5º do Art. 144 da CF fica claramente expresso o dever constitucional das Polícias Militares que cabem a estas a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Para Meirelles (1987), ordem pública é a situação de tranquilidade e normalidade que o Estado assegura ou deve assegurar às instituições e a todos os membros da sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas. Na mesma linha de pensamento, De Plácido (1987) ao se manifestar sobre o conceito em questão escreve que é a situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto, ou seja, é o conjunto de condições sem as quais não se pode ter uma vida social conveniente baseada na segurança das pessoas e bens, na saúde, na tranquilidade e na paz pública.

Logo, a Polícia Militar, através de seus agentes, ao realizar o policiamento ostensivo, objetivando a preservação da ordem pública, estará desempenhando uma função peculiar que lhe foi atribuída constitucionalmente, nos termos do que preconiza o art. 144, §5º, da CF/88, representando o interesse do Estado.

Relacionando órgão com serviço público, para Marinela (2007), o Estado, para melhor promover um serviço público de qualidade, especializa as atividades, criando órgãos que ficarão incumbidos de desenvolver serviços, visando o melhor resultado.

Como todo órgão público tem a finalidade de prestar serviço, Mello (2010, p.671) define tal serviço como:

Toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral [grifo nosso], mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça às vezes, sob um regime de Direito Público – Portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituídos em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Carvalho Filho (2010, p.350) comenta que “os serviços públicos visam o interesse público e se incluem como um dos objetivos do Estado. É por isso que são criados e regulamentados pelo Poder Público, a quem incumbe a fiscalização”. Portanto, resta claro que as ações do Estado são pautadas no interesse público e, consequentemente, a Polícia Militar deve ter esse interesse como base, para que não incorra em violação do seu objetivo.

2.1 PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS RELACIONADOS

Adentrando no âmbito da Administração Pública, todos os órgãos públicos embasam suas ações em princípios administrativos que as norteiam e para a PM, obviamente, não é diferente. Por causa disso, faz-se necessário explicitar as definições de princípios importantes, conforme se vê:

2.1.1 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Para Carvalho Filho (2010), todas as ações administrativas do Estado são voltadas para o interesse público, beneficiando a coletividade. Caso o interessado seja o particular, estará ocorrendo desvio de finalidade, quando há que prevalecer o interesse público.

Compactuando da mesma forma, Meirelles (2010, p.105) aborda que “é o atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competência, salvo autorização em lei”. Como visto, a Supremacia do Interesse Público tem como objetivo atender às necessidades de toda a população para que todos possam usufruir de igual forma.

2.1.2 PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE

Previsto expressamente no art. 37 da CF/88, o princípio da impessoalidade determina que a administração aja sempre baseada no interesse público, sem participação de interesses privados, evitando privilégios (Carvalho Filho, 2010).

Para reforçar, Lenza (2011, p. 1161) diz que “A administração deve sempre buscar a concretização do interesse público e não do particular”. Mantendo a mesma Linha de pensamento, Di Pietro (2011, p. 68) comenta que “a administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento”.

Assim, a partir do momento em que a Administração Pública passa a trabalhar para um determinado grupo de pessoas, excluindo as demais, estará violando o princípio em questão.

2.1.3 PRINCÍPIO DA FINALIDADE

Quando houver interesses particulares nas ações da Administração, haverá discriminações, desnorteando a finalidade do interesse público e resultando em um desvio de finalidade. Para se atingir a finalidade do interesse público, os interesses privados não poderão ser privilegiados (Carvalho Filho, 2010).

Nesse sentido, Meirelles (2010, p. 93) comenta:

A finalidade impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal que é unicamente o que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal.

Logo, fica evidente que, para não se desvirtuar de sua finalidade, a Administração Pública deverá agir com base nas normas de Direito, perseguindo o bem da coletividade, evitando o favorecimento pessoal.

2.1.4 PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Definindo de forma simplificada, para Arakaki (2013), o princípio é responsável por limitar a responsabilidade do Estado, conforme suas condições material, orgânica e orçamentária disponíveis.

Assim, o Estado, caso justifique que não tenha mínimas condições de oferecer determinado serviço, poderá limitar suas ações de acordo com a Reserva do Possível, ainda mais quando se tratarem de demandas não voltadas ao interesse de toda a coletividade.

2.1.5 PRINCÍPIO DA MORALIDADE

Tal princípio impõe à Administração não apenas uma atuação legal, mas também moral, ou seja, caracterizada pela obediência à ética, à honestidade, à lealdade e a boa-fé. Neste diapasão, pode-se definir moralidade como um conjunto étnico que visa obedecer não somente a lei, mas os princípios gerais do direito, da boa conduta, da razoabilidade e da proporcionalidade contidas nas relações humanas e administrativas, visando sempre o interesse público (ANDRADE, 2007). Para Meirelles (2006, p. 102), a moralidade administrativa é: “[…] o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da administração”.

Assim, o princípio da moralidade trata dos padrões éticos, mas objetivos, que são assimilados e difundidos entre a coletividade e as normas basilares do direito, e não apenas uma noção puramente pessoal do agente administrativo.

Ora, se o Estado oferece segurança a uma determinada entidade em detrimento de outras ou até mesmo em detrimento da própria segurança da sociedade ele fere não só o princípio da igualdade, mas, principalmente, o da moralidade. Isso seja qual for a justificativa que o Estado utilize para sustentar tal ou qual ato. Se ele fere logo de cara estes princípios, este ato torna-se passível de nulidade.

Imperativo aqui mencionarmos que a violação aos princípios que regem a administração pública entre eles os da moralidade, impessoalidade e economicidade caracteriza ato ilegal de improbidade administrativa, conforme previsto na lei, 8.429/92, de Improbidade Administrativa e explicado por Cunha Júnior (2009, p. 500) “Ato de improbidade administrativa todo aquele que, à custa da Administração Pública e do interesse público, importa em enriquecimento ilícito (art.9º); que causa prejuízo ao erário (art. 10) e que atenta contra os princípios da Administração Pública (art. 11)”.

Portanto, percebe-se que os policiais militares, agentes públicos que são, devem expressar a vontade do Estado em suas ações, preservando e mantendo a ordem pública. A vontade do Estado está em agir baseado nos interesses definidos como públicos no sistema normativo.